Saturday, May 2, 2009

A pura verdade



"Tenho como certo que constituímos um mistério completo para os nossos filhos. Se fossem capazes de exprimir em palavras a perplexidade que os assalta tantas e tantas vezes, haviam de nos dizer coisas engraçadas...; se não gostassem tanto de nós, talvez nos dissessem palavras que haviam de nos fazer corar. Ou talvez nos mandassem dar uma volta.
Talvez nos mandassem... crescer. É que não encontram uma lógica na forma como os tratamos. Ficam baralhados quando, depois de os termos conduzido a um certo estilo de vida, exigimos deles um comportamento exactamente oposto a esse estilo de vida.
E o pior de tudo é que têm razão. Exactamente toda a razão. A lucidez de que dispõem será infantil ou adolescente, mas ainda é lúcida. E nós já não somos muito lúcidos. Vejamos um exemplo de coisas que fazemos.


O menino lá em casa não faz a sua cama de manhã. Não prepara ele próprio a roupa para vestir no dia seguinte. Não arruma o seu quarto. Não prepara o seu lanche. A mãe tem um gosto todo maternal em realizar por ele essas tarefas.
Há anos que isto se passa assim, o que produz um estilo de vida.
E, depois, o pai vai levar o menino à escola, mesmo que, indo a pé, demorasse apenas dez ou quinze minutos. É que a chuva, e os atrasos, e o peso da mochila, e o perigo de atravessar a estrada... E, se for na grande cidade, os assaltos... Já uma vez roubaram um relógio ao primo dele.
Há anos que isto se passa assim, o que produz um estilo de vida.


E, depois, o menino, além de não tratar das suas coisas, também não é envolvido nas tarefas comuns da casa. Porque, se puser a mesa, de certeza que parte pelo menos um copo. Porque não é de grande ajuda se for preciso pregar um quadro na parede. Porque se sujaria se ajudasse na pintura da sala; e seria preciso, além do mais, andar a tomar conta dele. Porque está muito frio para ser ele a despejar o saco do lixo lá fora, no contentor...


Há anos que isto se passa assim, o que produz um estilo de vida. Hoje em dia, não mexe um dedo nem sequer para colocar uma cadeira no lugar. Consome as coisas que aparecem feitas, e é capaz de resmungar se não lhe lavaram bem umas sapatilhas, ou se o jantar se atrasou.
Entretanto, chega uma altura em que os pais ficam alarmados. Assustamo-nos quando as coisas chegam a um certo ponto. Quando nos parece que ele está a ficar muito infantil, pouco maduro para a idade. Ficamos em pânico quando o menino teve uma quebra grande no rendimento escolar. Insistimos então com ele para que estude, para que seja responsável na sua vida escolar...


Mas sucede que a responsabilidade não nasce senão depois de se ter cultivado cuidadosamente, demoradamente, a semente da responsabilidade. Passámos anos a fomentar no menino um estilo de vida irresponsável, e agora, de repente, exigimos-lhe que seja responsável? Passámos anos a apaparicá-lo, e agora queremos que seja maduro? Para ele ser maduro, teria sido necessário que tivesse vivido: que tivesse passado experiências diversas, que tivesse enfrentado obstáculos, que tivesse feito coisas sozinho, que tivesse errado e emendado depois os erros, que se tivesse aperfeiçoado à custa de esforço pessoal. E nós temos feito tudo para lhe evitar esses obstáculos, essas experiências e esse esforço.


É claro que, quando chega a altura em que precisa mesmo de estudar, porque as matérias se tornaram mais difíceis, não é capaz de o fazer. Pois é natural que - não tendo sido habituado ao esforço de fazer a cama, de ir a pé para a escola, de pôr a mesa... - não seja capaz do esforço de estudar, que é maior do que os outros.
É escusado levar o menino ao psicólogo. É escusado pensarmos que o problema está em que não sabe estudar, em que desconhece as técnicas de estudo. O problema dele são... os pais. Exactamente.
Seremos capazes de mudar?"



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"...o meu coração é uma floresta cheia de nevoeiro - guarda tudo e não encontra nada. Sou uma recordadora profissional. Vivo de recordações, mesmo daquilo que ainda não fiz.E repito infinitamente os mesmos truques. Iludo-me. Penso sempre que amanhã é que vai ser. Desenvolvi um erotismo futurista: deleito me com o puro prazer dos meus sonhos.De certa maneira, já vivi tudo, porque em sonhos consigo projectar-me inteira nos corpos, nos sentimentos e nas experiências dos outros. Tenho uma capacidade estereofónica; posso ter ao mesmo tempo cem e dezoito anos. O que é um cansaço..." IP