Sunday, November 8, 2009

Ectopia Cordis (Um defeito no coração)


"Em má hora ela falou. Disse que mais valia arrancarem-lhe o coração. Tinham acabado de lhe arrancar o filho dos braços. Neste lugar, tudo se entende à letra. O guarda riu-se, espetou-lhe uma faca no peito. Nevava. Ela caiu, ele ajoelhou-se na neve ao lado dela, rasgou-lhe a carne, puxou-me e atirou-me para o chão. Deixei de ser o coração dela. A neve cobriu-me depressa. Se não nevasse, eu já teria morrido. Ou alguém me teria comido; é esse o destino de qualquer resto de coisa carnal que surja na lama. Duas aurículas, dois ventrículos, envolvidos por uma espécie de túnica que se chama pericárdio. As cavidades internas estão forradas por uma membrana delgada que se chama endocárdio; à zona muscular dá-se o nome de miocárdio. Ela deixou de sofrer. Eu também - esse é o privilégio do cérebro. Ao coração, músculo involuntário, pede-se-lhe apenas que bombeie o sangue. Que estremeça e lute pela vida. Acabou a minha luta. Silêncio. Continuarão os gritos finais dos que morrem nas câmaras de gás. Não ouço. O cheiro específico dos corpos que se derretem sob o fogo. Não sinto. Apenas um rumor de vida; o dos pequenos riachos de sangue que se infiltram na lama e na neve, depois dos fuzilamentos. Os prisioneiros são chamados para cobrirem de terra os poços de sangue. Debaixo da terra o sangue pode sobreviver umas horas mais. Talvez um dia nasçam aqui flores cor de sangue, flores grossas, belas e inúteis como corações. Procuro recordar a coreografia da vida, continuar a vibrar. Não sei porquê - para que há-de bater um coração sem corpo? Para que há-de sobreviver? O domínio das perguntas não é meu. O cérebro da minha dona estava sempre a fazer perguntas. Era professora de astronomia. Embalava o filho com canções sobre a lua, dizia-lhe que um dia haviam de lá ir os três - ele, ela e o pai do bebé. Não era um devaneio romântico. A Sara não era desse tipo. Era do género controlado. Quando me sentia agitado, trémulo a bombear-lhe uma excessiva quantidade de sangue para o rosto ou para o sexo, zangava-se comigo e dava-me ordem para que me controlasse. Era uma excelente criadora de ordens. Queria que o universo tivesse um sentido. Estudava para que o universo se organizasse. Não se dispersava. Só se apaixonou uma vez, pelo pai do bebé. Todas as amigas dela se apaixonavam com frequência. É uma das actividades favoritas das pessoas, em situações de guerra: perder a cabeça e seguir o coração, dizem elas. Na verdade é exactamente o contrário:decidem apaixonar-se para preservarem a cabeça e o corpo, para não verem a comida que não têm e as possibilidades da existência que se fecham, como cercas de arame farpado, ao seu redor. As pessoas enganam-se de propósito, para terem a ilusão de que poderiam controlar a vida, se quisessem fazer um esforço de não se enganarem. Desejam aqueles que nunca as desejarão, desdenham o que lhes é dado para obterem esse prémio superior, o sublime prazer da infelicidade conquistada. A Sara, essa brincadeira infinita dos afectos causava-lhe dó. Ou, ás vezes, riso. Era fácil viver no peito dela. Uma vida tranquila, apenas agitada pela descoberta de uma nova estrela nessa névoa sem limite a que se chama céu. Sara acabou - eu sou tudo o que dela resta, e por pouco tempo. Um coração sensato a cristalizar sensatamente em gelo, no silêncio do sangue. Não ter ouvidos nem olhos. Nem ossos que se possam quebrar, nem nervos. A minha felicidade é essa.

Duas mesas a um metro de distância uma da outra, suportando uma vara de metal da qual pendia um corpo algemado, de cabeça para baixo, ao qual chicoteavam, com tiras de couro, as costas e as solas dos pés. O balouço de Boger, assim chamado em honra do homem da Gestapo que inventou esta económica máquina de tortura. Já não o vejo. Já não ouço os gritos que soltavam os homens e mulheres durante a tortura. Para abafar os gritos, convocavam a orquestra. Uma orquestra de prisioneiras, exemplarmente dirigida por Alma Rosé, sobrinha de Gustav mahler. Ordenavam-lhes que tocassem marchas alegres, com energia, para que o som da música apagasse todos os outros. Mas Sara não sabia tocar nenhum instrumento, e não havia ali trabalho em que uma astrónoma pudesse ser útil. Uma das funções de Sara era lavar o sangue do chão, depois de terminado isso a que aqui chamam interrogatório. Sara cantava baixinho ao seu bebé: "Amanhã virão salvar-nos e iremos até à lua num avião iluminado". Conseguiu esconder o bebé durante quase um mês. Teve a sorte de chegar num comboio demasiado cheio. Teve a sorte de ter um bebé tranquilo. Teve a sorte de conseguir escondê-lo debaixo de uma manta no fundo do barracão antes de ser inspeccionada, tatuada e tosquiada. Teve a sorte de ser forte e não estar grávida. Sara gostava de enumerar as sortes que tinha. Mas o bebé chorava cada vez mais, e era-lhe cada vez mais difícil arranjar um bocadinho de qualquer coisa alcoólica para o calar. As outras mulheres não conseguiam dormir. Alguma terá acabado por a denunciar - a troco de um bocado de pão, talvez. Na melhor das hipóteses.
O frio entra em mim. Congelo devagar. Muito. Devagar. Se ao menos eu pudesse hibernar até que alguém precisasse de um coração e alguém descobrisse o método de transferir corações de uns corpos para os outros. Alguém. Nem que fosse para acordar num corpo de cão. Se os cães sobreviverem a isto. Ou sobre o tampo de uma mesa de escola, com dedos de criança a mexerem-me, para verem como é composto um coração. Um coração judeu. Duas aurículas, dois ventrículos. Um órgão esponjoso, de cor avermelhada, coberto pelo endotélio, uma capa de células planas que evita a coagulação do sangue. Um coração judeu. Em tudo exactamente igual a qualquer outro coração humano. Abandonado, em excelente estado de conservação, na neve suja de Auschwitz, no último dia do mês de Dezembro de 1944."


Escrito por Inês Pedrosa na revista Egoísta que hoje em dia já não é publicada.

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"...o meu coração é uma floresta cheia de nevoeiro - guarda tudo e não encontra nada. Sou uma recordadora profissional. Vivo de recordações, mesmo daquilo que ainda não fiz.E repito infinitamente os mesmos truques. Iludo-me. Penso sempre que amanhã é que vai ser. Desenvolvi um erotismo futurista: deleito me com o puro prazer dos meus sonhos.De certa maneira, já vivi tudo, porque em sonhos consigo projectar-me inteira nos corpos, nos sentimentos e nas experiências dos outros. Tenho uma capacidade estereofónica; posso ter ao mesmo tempo cem e dezoito anos. O que é um cansaço..." IP