
Matilde tinha ficado a fazer horas extra no hospital, como de costume, e sentia-se extremamente cansada, tinha sido uma noite longa e ela só queria ir para casa deitar-se.
Quando entra um paciente pelas portas da urgência a dentro ela suspirou, chegando à conclusão que ainda não era naquele momento que ia para casa.
- Qual é o seu estado? - perguntou Matilde.
- Este senhor foi encontrado na rua a cortar os próprios pulsos, não tem identificação e já perdeu demasiado sangue. - diz um dos paramédicos que o trouxe.
Este senhor de barba rija e comprida, com buracos evidentes em toda a sua vestimenta, desde os sapatos até ao boné que usava, entrou na sala de operações a delirar. Os médicos conseguiram parar a hemorragia e tratar-lhe dos cortes. Quando estava estabilizado foi levado para os cuidados intensivos. Sobreviveu. Tinha perdido muito sangue mas não o suficiente para se cumprir o seu desejo.
Matilde começou a pensar o que levaria uma pessoa a cortar os pulsos, o que levaria uma pessoa a desistir de viver... E enquanto pensava nisto ia-se vestindo para ir para casa. Mas antes de ir decidiu passar pelo quarto deste senhor... Estava ela a olhar pela janela para dentro do quarto dele quando viu que o seu ritmo cardíaco tinha começado a acelerar. Entrou para dentro do quarto para tentar perceber o que se passava quando o senhor acordou:
- O quê? Eu ainda estou vivo? Bolas! Nem matar-me como deve ser consigo... - disse desiludido e com uma voz baixa quase imperceptível.
- Boa tarde, eu sou a enfermeira Matilde. Tem algum familiar que queira contactar?
- Eu não tenho ninguém minha senhora. Nem casa, nem emprego, nem nada de valor. Os meus amigos são uns amigos da onça que à mínima oportunidade roubam-me o pão que tanto me custa a comprar. Eu não acredito que ainda estou neste mundo que nada me diz e a quem já não tenho nada a dizer... - disse o senhor já numa voz mais audível.
- Não diga isso, existe sempre esperança.
- A minha já se perdeu... Os meus pais mandaram-me para fora de casa há muitos anos e desde aí que tenho vivido nas ruas. Sendo um parasita para a sociedade, não sendo sequer considerado uma pessoa para a maioria. Gostava tanto de ter estudado e me ter tornado alguém na vida. E de ter tido uma mulher e dois filhos...
Enfim, nasci e o meu destino já estava traçado para ser ninguém.(pausa para suspirar) E ninguém morrerei. - desabafou já com uma voz perfeitamente normal.
Matilde já muito atrapalhada com tal desabafo e sem saber o que dizer, saiu da sala e foi buscar um psicólogo que pudesse ajudar aquele pobre homem.
Quando voltou a máquina estava a apitar fervorosamente e o senhor não se encontrava no quarto. Foi uma questão de segundos até toda a ala dos cuidados intensivos ouvir um grito de um homem. Era a voz do senhor sem identificação.
Matilde foi a correr até onde pensou ter vindo o grito e encontrou o homem moribundo no chão, com sangue a esguichar da garganta. Ele tinha partido o espelho da casa de banho e tinha cortado a sua própria garganta. O grito que se tinha ouvido tinha de ter sido feito antes de ter cortado a garganta, como uma despedida do mundo. Matilde estava boquiaberta com este fim tão trágico e começou a pensar em como alguém podia passar pela vida sendo Ninguém e Ninguém morrer.
Matilde tinha de ligar para a funerária e este senhor tinha de ser enterrado.
- Mas... - perguntou-se ela - ...que nome irá ficar na sua campa? Que mensagem vai lá estar gravada?
Matilde só de pensar numa lápide em branco enchia-se de tristeza e melancolia, e por isso, gastou do seu próprio dinheiro e mandou esculpir na lápide:
- João Maria Ribeiro, Marido carinhoso, Pai dedicado, Um engenheiro brilhante, Deixa saudades.
- Assim, talvez consiga ir em paz, sabendo que deixou a Terra com um nome e com uma família...
2 comments:
Estou sem palavras.
Tão simples... no entanto tão forte.
*
O.O
Não estava a espera que conseguisses escrever algo assim.
Deu-me um arrepio quando acabei de ler.
Post a Comment